Personagens
MOLEIRO - DINIS BINNEMA
HOMEM - JOÃO TARRAFA
CRAWFORD - PEDRO SEMEDO (OTC)
FRADE - MANUEL FILIPE (OTC)
CRIANÇAS - AFONSO SEMEDO | MARIA MARQUES | ÍRIS REVERENDO | ÉDER REVERENDO
GENERAL - RUI FONSECA (AH)
SOLDADOS PORTUGUESES - ANTÓNIO RAMOS (GREHC) | JOÃO
MONJARDINO (AH)
TRATADOR DO BURRO - NUNO MESQUITA
À medida que o público vai entrando, estão três crianças a brincar perto do moinho. Após o público estar sentado, as crianças brincam em silêncio. Música. Entra uma outra criança a gritar e a chamar a atenção:
CRIANÇA 3: Fujam! Temos de ir embora, as tropas vêm aí!
Passa pelas crianças que estão a brincar e saem de cena, levando o público a aperceber-se do MOLEIRO, que se aproxima do moinho.
MOLEIRO: Serão os franceses? Como, se eles, de manhã, ainda estavam em Tondela?
Som de clarins, ao longe.
MOLEIRO: (Surpreendido.) São os ingleses! O Diabo em pessoa já chegou a casa dos Deuses, está visto. Estamos a viver um verdadeiro Inferno. Os ingleses vieram ajudar? Qual quê?! Vejam bem as nossas gentes, as nossas mulheres, as nossas crianças... Não sei não. Cá para mim, o nosso povo não vai sobreviver a tamanha atrocidade.
Ouve-se o som das tropas e vê-se as tropas a aproximarem. Colocam-se em frente ao moinho. O general dá algumas ordens.
HOMEM: General, aquele homem é meu conhecido, dá-me licença que o vá cumprimentar?
GENERAL: À vontade.
HOMEM: (Aproximando-se do MOLEIRO.) Ti João Rana, folgo em vê-lo. MOLEIRO: Vocemessê, por aqui?
HOMEM: Pois é, Ti João. Não podia virar as costas à minha pátria. Depois do nosso encontro conversei com a minha Ana e concordamos em seguir o seu conselho: “Um homem, não volta as costas ao perigo”. Cá estou, de arma em punho para defender o nosso povo. Vejo que o Ti João sempre veio até ao seu moinho.
MOLEIRO: Que Deus esteja convosco! Pretendo chegar ao meu moinho, sim. Pretendo que passemos os dois. (Apontando para o burro.) Eu e ele somos apenas um.
HOMEM: Ti João Rana, não é seguro ir para dentro do moinho. As tropas francesas estão-se a aproximar.
MOLEIRO: Oh, oh... Não se preocupe. Os franceses não botam cá acima, ao alto da serra, não têm barbas para isso. Ouça o que lhe digo.
HOMEM: Em todo o caso, esperai ali. (Bate à porta do moinho. CRAWFORD abre a porta.) Na volta da estrada que cabrita entre os sargaçais da encosta, está um homem e um burro que querem passar.
CRAWFORD: Passe o burro; o homem, não.
HOMEM: Com licença de vossa senhoria. Diz que o burro e ele é tudo um.
CRAWFORD: Então, não passam, nem o homem, nem o burro.
MOLEIRO: Com licença de vossa senhoria... É aqui que tenho o meu ganha-pão, peço que me deixem passar.
CRAWFORD: Vocemessê diz que é dono deste moinho, hein?
MOLEIRO: Deus nosso senhor, não me permitiria que tal mentira saísse da minha boca se esta não fosse verdade.
CRAWFORD: Pois, bem, pode passar. Mas fique desde já sabendo que se, porventura, não falou a verdade, amarra-se ao rodado de uma peça e fuzila-se.
MOLEIRO: Ora, Deus seja com vossemecês. Jesus, Maria, José.
CRAWFORD: E que vem fazer ao moinho?
MOLEIRO: Que venho fazer ao moinho? Venho bailar.
CRAWFORD: (Para os soldados.) Levem este homem para o trem da artilharia e dêem-lhe vinte varadas!
MOLEIRO: Não se agaste vossemecê, valha-o Deus. Que há de um moleiro fazer num moinho, senão moer?
CRAWFORD: A estas horas?
MOLEIRO: Irei primeiro ao convento. CRAWFORD: Vai-se confessar?
MOLEIRO: Tomara eu pecados, senhor, que confessores não faltam. Sou o moleiro dos frades. Vou buscar o trigo.
CRAWFORD: A ver vamos se não está a mentir. Ordeno que tragam o Frade até aqui. Se o frade o reconhecer, pode passar. Se não, encostem-no a um muro e arcabuzem-no.
O HOMEM vai buscar o FRADE.
MOLEIRO: Então, Deus lhes dê saúde a vossemecês todos e os livre de trabalhos esta noite.
CRAWFORD: Quando se agradece tira-se o chapéu, entendido?
CRAWFORD volta para a porta.
MOLEIRO: Só se vossemecê me emprestar o seu, que eu não tenho. (Vai para perto do burro.) Mas eles vieram salvar quem afinal? O nosso príncipe regente nem sequer ficou para contar a história. A minha sorte, a minha casa, é o meu moinho. Queira Deus que os franceses não botem cá ao cimo da serra... Não. Eles não têm barbas para isso.
O HOMEM traz o FRADE, que vem com um saco, até ao MOLEIRO.
MOLEIRO: Vossa Paternidade, folgo em vê-lo.
HOMEM: O nosso general Crawford mandam perguntar a vocemessê se conhece este homem. Sabemos bem que sim.
FREI: Ora pois, conheço-o muito bem. É o nosso moleiro. Não me digas que mandas-te chamar para te despedires de nós, amigo?!
Música.
MOLEIRO: (Com um travo da comoção a apertar-lhe a garganta.) Eu não sabia que Vossas Paternidades deixavam o convento.
FREI: É a vontade de Deus. Se queres, levamos-te connosco. MOLEIRO: Não, reverendo Padre. Eu quero ficar no moinho. FREI: O moinho está no meio das tropas. Vai ser crivado de balas.
MOLEIRO: Então Vossa Paternidade quer que eu desampare o meu moinho? Mal comparado, tirante o ser a casa de Deus, é como o conventinho para Vossas Paternidades. É a minha família. É um pai que aqui tenho. Deu-me de comer toda a vida.
FREI: Está bem. Então, que quereis?
MOLEIRO: Pedir ao reverendo Padre chaveiro que me mande carregar a cavalgadura, com o perdão de Vossas Reverências, de mais três sacas de trigo, que não tenho cá nenhum.
FREI: Vens pôr o moinho a trabalhar?
MOLEIRO: Pois, para que é ele? Os franceses não deitam cá acima, ao alto da serra. E, se deitarem, acabou-se. Um homem é um homem, entende Vossa Paternidade? Não volta as costas ao perigo. Se morrer, morro abraçado ao meu moinho. Coitado, ele já é mais velho do que eu. Pois então, que Vossas Reverências tenham boa jornada e vão com a graça de Deus. Ámen, Jesus.
A música termina. O MOLEIRO ajoelhou-se para beijar o hábito do FRADE. Despedem- se. O FRADE sai.
CRAWFORD: Very well, faça o favor de me entregar o salvo-conduto.
MOLEIRO: Aqui está.
CRAWFORD lê o salvo-conduto. Atentou na cara de Páscoa do MOLEIRO, e resmungou: Bom. Mas no moinho não podes entrar.
MOLEIRO: Saiba vossemecê que o moinho é meu.
CRAWFORD: Queres morrer debaixo dos escombros?
MOLEIRO: Quero.
CRAWFORD: Então deita-te à porta, como os cães.
GENERAL: Hey!
O HOMEM vai a correr atrás do moinho para perceber o que se passa. Volta.
HOMEM: As tropas francesas começam a movimentar-se, temos que defender esta posição. O General Ney está a aproximar-se.
CRAWFORD: Preparem-se! Pretendo surpreender o nosso inimigo! (Para o TRATADOR DO BURRO.) You, leva o burro daqui.
Colocam-se em posições de defesa. Fica apenas o MOLEIRO e o HOMEM à porta do moinho. Inicia-se assim uma troca de tiros e bombardeamentos, com jogo de luzes fora do moinho e que se transporta até dentro do moinho. MOLEIRO assusta-se e começa a gritar, tentando entrar no moinho. Discussão improvisada entre ele e o HOMEM, que não o quer deixar entrar.
MOLEIRO: Quero morrer no meu moinho, quero morrer no meu moinho! A artilharia francesa vai arrasar o meu moinho. (Atira-se a tentar entrar, ajoelha-se e implora que o deixem entrar.) O meu moinho, o meu rico moinho! Deixem-me morrer no meu moinho.
O HOMEM decide abrir a porta, e faz sinal ao MOLEIRO para entrar. Os tiros e bombardeamentos continuam, depois cessam. Pausa. Muda o ambiente. Mudança de dia. Quando o HOMEM entra para se certificar que o MOLEIRO está bem, encontra-o encostado às cambeiras, pálido, ferido de raspão na cabeça por uma bala:
MOLEIRO: (De dentro do moinho.) Eu não disse a vossemecê que eles não botavam cá acima?
Blackout.